Quando analiso a sociedade, temo a soberba. É preciso estar muito atento às formas sutis de penetração deste sentimento. Ele se insinua de infinitas maneiras, sob qualquer pretexto e com múltiplas faces. O sentimento de superioridade bloqueia a inteligência e nos cega diante de evidências. Em poucas palavras, ele nos inferioriza as capacidades, a visão de mundo e a atuação na coletividade. Por isso costumo tomar todo o cuidado. A facilidade que sinto em perceber, a todo momento, as mentiras feitas verdades que são propagadas como valores intocáveis, trabalhadas para se instalarem no inconsciente coletivo, junto à dificuldade que percebo nas pessoas em se dar conta da própria condução dos seus valores, me fazem duvidar da minha humildade e, por conseqüência, das minhas conclusões. Levanto, preventivamente, a hipótese da soberba.
Mas olho para a estrutura da sociedade e me parece muito simples. A ignorância, a miséria, fruto de uma desigualdade brutal; um povo aparvalhado, infantilizado, entre a ausência de ensino e a “formação” de opinião pela mídia privada; a violência de um Estado que não garante as condições mínimas definidas pela sua própria constituição – básicas para extinguir esses males – e que se transforma na violência social, no crime, na truculência da polícia contra as comunidades pobres. Nos crimes das grandes empresas contra as populações que se encontrem em seu caminho insano, em direção ao lucro. Contra o meio ambiente, contra a soberania nacional, contra os povos nativos e locais, contra a qualidade de vida que apregoam como razão da sua existência - numa hipocrisia mal mascarada pela publicidade inteligente, insidiosa, que pega pelo inconsciente, o subliminar. Tudo isso e muito mais me dizem claro que a sociedade humana está dominada e controlada por empresas, quer dizer, os donos das maiores empresas controlam, interferem, influenciam, pressionam, concentram poderes o mais que podem sobre os Estados nacionais, compondo com as empresas de cada lugar, com os poucos das elites locais. Aí está a razão dessa estrutura cruel de sociedade. Será que é muita pretensão minha? Que eu tô delirando, vendo coisas? Parece tão óbvio...
A estrutura social (imposta pelos poderes reais, os econômicos, ou das pessoas que se escondem atrás de suas grandes empresas), enquanto massacra a maior parte, submete enorme parcela da população, as classes intermediárias, a uma existência sem outro sentido que “subir na vida”, de forma a sustentar essa estrutura, com nossos desejos, nossos objetivos de vida, nosso egocentrismo induzido e estimulado. O massacre publicitário é o tempo todo. Forma nossas opiniões, desejos e valores desde a infância. A agressividade é estimulada, a competitividade é imposta. Os postos de comando são mais bem remunerados, imprescindíveis que são no controle da maioria, na administração da ordem vigente. A grade curricular das escolas é direcionada ao “mercado”, não mais à sociedade. O ensino público, fundamental e médio, é deteriorado, destruído, conservando as formas pra sair na foto. Tudo interessa às empresas, até mesmo a miséria – a melhor garantia de manutenção dos salários baixos. É preciso explorar ao máximo. Não é à toa que o Repórter Brasil denuncia trabalho escravo, todos os dias. A estrutura favorece.
E nós favorecemos a estrutura, desejando o que nos mandam, nos submetendo a trabalhos de que não gostamos, priorizando o ter, o possuir, o desfrutar, em detrimento de ser, de estar, de se relacionar com o mundo e consigo mesmo, abrindo mão de nos realizar como seres humanos. A sociedade “como um todo” nos cobra essa desumanização. Enxergamos a miséria e a ignorância como inevitáveis. Vivemos um presente frustrante, na expectativa de “benefícios” futuros, que não compensam o alto preço que custam em qualidade de vida ao longo do tempo. Permitimos que nos formem os valores, através de mecanismos do inconsciente, conhecidos pelos marqueteiros, publicitários e “formadores de opinião” da mídia. Sem perceber, não vemos alternativas diante das pressões na direção da normalidade, muitas vezes cobrando de outros as mesmas posturas. Cheguei a trilhar esse caminho, mas a angústia e a falta de sentido eram tão intensas que resolvi mudar o rumo, apesar das ameaças. Mesmo sem saber a direção a seguir. E as ameaças de discriminação, de repulsa social, de perseguição se concretizaram. Não foi trágico, apenas sintomático. Eu procurava caminhos que não me eram apresentados. Não podia esperar compreensão, muito menos apoio. E não houve nem respeito. Com o tempo, percebi que o único respeito imprescindível é o próprio. E que, em alguns casos, o desrespeito é como um elogio.
É a nossa permissão que faz a sociedade ser o que é. Nossa acomodação, nosso medo, nossa indiferença, nossos objetivos de vida, tudo plantado, tudo planejado. Acolhemos valores desumanos e vivemos desgraçadamente em torno deles, sofrendo-lhes as conseqüências e sem saber a quê atribuir a nossa angústia.
Simples assim. As empresas dominam os Estados. A coisa pública está imersa na privada. O inimigo se instala, sorridente, nas salas das casas, com declarações de afeto e juras de amor, “entretendo” com novelas e programas (por onde escorrem as invasões subliminares, a formação de valores falsos, os condicionamentos). E ataca os que o denunciam, com seus jornais e revistas, rádios e televisões, criminalizando, distorcendo e omitindo informações, incitando as forças de segurança e a população em geral contra os que ousam resistir – e a população, em tais condições, não percebe os crimes dos quais é vítima.
Buscar a realização pessoal humana é um ato revolucionário. Construir seus próprios valores, independente dos induzidos, é uma obrigação de quem o percebe. Renegar as marcas, consumir apenas o necessário, exterminar a cultura do consumo, desenvolver o gosto pela contemplação, a movimentação gratuita, a diversão sem custo monetário, a alimentação e a medicina mais próximas à natureza e ao bem estar interno. Dedicar mais atenção aos sentimentos, desenvolver a tolerância, a reflexão, a solidariedade, a consciência. E aplicar nas relações com os indivíduos e a coletividade. A mudança precisa de base interna, pra ter força. As mudanças externas são uma extensão, uma conseqüência que, sem as raízes internas – profundas e sinceras -, logo secam e morrem, ou se demonstram ervas venenosas. Como disse Gandhi, é preciso fazer em si as mudanças que se deseja no mundo.
Capa do nº1 do fanzine, que é dobrada ao meio.
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