Matéria Retirada do Site: resistir.info
Marie-Ange Patrizio: O conceito de não-violência faz-nos pensar imediatamente em Gandhi. Qual o seu juízo acerca desta grande personalidade histórica?
Domenico Losurdo: Há que distinguir duas fases na evolução de Gandhi. No decorrer da primeira fase, ele não pensa de todo numa emancipação geral dos povos coloniais. Ao contrário, ele conclama a potência colonial – a Grã-Bretanha – a não confundir o povo indiano – que a exemplo dos ingleses pode exibir uma civilização antiga e origens raciais "arianas" – com os negros, com, até mesmo, os "grosseiros cafres, cuja ocupação é a caça e cuja única ambição é acumular um certo número de cabeças de gado para conquistar uma mulher e levar a seguir uma existência de indolência e de nudez" (sic).
A fim de obter a cooptação pela raça dominante, pelo povo dos senhores (arianos e brancos), Gandhi no princípio do século XX conclama os seus co-nacionais a porem-se ao serviço do exército imperial empenhado numa repressão feroz contra os zulus.
Sobretudo, durante a Primeira Guerra Mundial, o presumido campeão da não-violência propõe-se a recrutar 500 mil homens para o exército britânico. Ele faz isso com tamanho zelo que escreve ao secretário pessoal do vice-rei: "Tenho a impressão que se eu me tornasse o vosso recrutador chefe poderia vos submergir com homens". Quando se dirige aos seus co-nacionais ou ao vice-rei, Gandhi insiste de modo quase obcecado sobre a disponibilidade para o sacrifício que todo o povo é conclamado a demonstrar: é preciso "dar o nosso apoio total e decidido ao Império", a Índia deve estar pronta para "oferecer, no momento crítico, os seus filhos aptos a combater como oferenda ao Império"; "devemos, para a defesa do Império, dar todo o homem que disponhamos".
Com uma coerência de aço, Gandhi deseja que os seus próprios filhos se alistem e participem da guerra.
Marie-Ange Patrizio: Quanto a isso, tu confrontas a atitude de Gandhi com aquela tomada pelo movimento anti-militarista de inspiração socialista e marxista, e é este último que vai se portar melhor.
Domenico Losurdo: Sim, recuso o mito segundo o qual o marxismo seria sinónimo de culto da violência. Remeto em particular à figura de Karl Liebknecht, que a seguir um dos fundadores do Partido Comunista Alemão, antes de ser assassinado com Rosa Luxemburgo. Depois de ter durante muito tempo lutado contra o rearmamento e os preparativos de guerra, quando é chamado à frente de combate, antes de ser preso por causa do seu pacifismo, Liebknecht envia uma série de cartas à sua mulher e aos seus filhos: "Não atirarei [...] Não atirarei mesmo que me seja ordenado. Poderão fuzilar-me por causa disso".
Marie-Ange Patrizio: Resta o facto de que Liebknecht acabou por saudar a violência da Revolução de Outubro desencadeada por Lenine.
Domenico Losurdo: Não se pode perder de vista que no princípio da Primeira Guerra Mundial, Lenine, longe de celebrar à maneira de Gandhi o valor da vida militar e do combate no frente, exprime a sua "profunda amargura". A esperança, moral antes de ser política, renasce nele graças a um fenómeno que poderia talvez bloquear a máquina infernal da violência: é a "fraternização entre os soldados das nações beligerantes, até nas trincheiras". Lenine escreve: "Está bem que os soldados maldigam a guerra. Está bem que exijam a paz. A fraternização pode e deve tornar-se fraternização em todas as frentes. O armistício de facto numa frente pode e deve tornar-se um armistício de facto em todas as frentes".
Infelizmente, esta esperança será frustrada: os governos beligerantes tratam a fraternização como uma traição. Neste ponto, trata-se de escolher não entre violência e não-violência, mas sim entre a violência da continuação da guerra de um lado e a violência da revolução destinada a por fim à carnificina insensata, de outro lado.
Os dilemas morais de Lenine não são diferentes dos dilemas morais com os quais se confrontaram nos Estados Unidos os pacifistas cristãos das primeiras décadas do século XIX (é de capítulo da história que parte o meu livro). Opostos a toda forma de violência e à escravidão dos negros (ela própria expressão de violência), enquanto a Guerra de Secessão se prepara e depois se desencadeia, os pacifistas cristãos são chamados a fazer uma escolha trágica: apoiar directamente ou indirectamente a continuação desta forma particularmente horrível de violência que á a instituição da escravatura ou então aderir a esta espécie de revolução abolicionista que acabou por ser a guerra da União? Os pacifistas mais amadurecidos escolheram esta segunda alternativa. Eles situam-se de maneira semelhante àquela que mais tarde caracterizará Lenine, Liebknecht e os bolcheviques no seu conjunto.
Marie-Ange Patrizio: Deixámos Gandhi no seu papel de recrutador chefe ao serviço do exército britânico. Falou entretanto de uma segunda fase do seu empenhamento. Quando e como surge ele?
Domenico Losurdo: Dois acontecimentos o determinaram: um de carácter internacional, o outro nacional. A Revolução de Outubro e a difusão da agitação comunista nas colónias e na própria Índia constituem um formidável golpe violento e brusco na ideologia da pirâmide racial e torna obsoleta a aspiração à cooptação na raça branca ou ariana, que deve agora enfrentar a revolta generalizada dos povos de cor.
Mas o que vai desempenhar um papel decisivo é sobretudo uma experiência directa e dolorosa para o povo indiano. Este esperara melhorar a sua condição batendo-se valentemente no exército britânico no decorrer da Primeira Guerra Mundial. Mas apenas terminadas as celebrações da vitória, na Primavera de 1919 o poder colonial torna-se responsável pelo massacre de Amritsar. Esta repressão não só custou a vida a centenas de indianos desarmados como comporta também uma terrível humilhação nacional e racial pela obrigação imposta aos habitantes das cidades rebeldes de terem de arrastar a quatro patas para entrar ou sair de suas casas. Para citar Gandhi, "homens e mulheres inocentes foram obrigados a arrastar-se como vermes, sobre o ventre". Daí resulta uma vaga de indignação por causa das humilhações, da exploração e da opressão infligidas pelo império britânico: o seu comportamento é um "crime contra a humanidade, que talvez não encontre paralelo na história". Tudo isto faz desaparecer junto aos indianos o desejo de serem cooptados numa raça dominante que agora lhes parece odiosa e capas de todas as infâmias.
Marie-Ange Patrizio: A partir de que momento Gandhi leva realmente a sério a sua profissão de fé da não-violência?
Domenico Losurdo: Na realidade, no segundo Gandhi, não desapareceu de todo a disponibilidade para conclamar os seus co-nacionais a acorrer aos campos de batalha ao lado da Grã-Bretanha; mas agora ele coloca como condição para este apelo às armas a concessão da independência da Índia. Em contrapartida, é difícil imaginar o segundo Gandhi a fazer a promoção da participação dos seus co-nacionais na repressão de uma revolta como a dos zulus (um povo cruelmente oprimido pelo colonialismo). A partir da Revolução de Outubro e da repressão de Amritzar o movimento independentista indiano é uma parte integrante do movimento de libertação nacional dos povos oprimidos. E Gandhi identifica-se plenamente com este movimento sem proceder a uma divisão entre violentos e não-violentos. Em Junho de 1942, exprime a sua "profunda simpatia" e a sua "admiração pela luta heróica e os sacrifícios infinitos" do povo chinês, decidido a defender "a liberdade e a integridade" do país. Trata-se de uma declaração contida numa carta dirigida a Chiang-Kai-Chek, que neste momento estava aliado ao Partido Comunista Chinês. Ainda em Setembro de 1946 – ou seja, depois de Churchill ter aberto a Guerra Fria com o seu discurso de Fulton – Gandhi exprime a sua simpatia pelo "grande povo" da União Soviética, dirigido por "um grande homem como Staline".
Marie-Ange Patrizio: Enquanto fazes um julgamento positivo sobre o segundo Gandhi e sobre Martin Luther King, mostras-te muito crítico quanto ao Dalai Lama, que no entanto é celebrado actualmente como o herdeiro da tradição não violenta.
Domenico Losurdo: No meu livro cito um ex-funcionário da CIA, que declara tranquilamente que a não-violência era um "écran" de que o Dalai Lama se servia para as relações públicas da revolta armada que estimulava no Tibete, graças aos financiamentos e aos arsenais estado-unidenses [1] . Contudo, esta revolta fracassou por falta de apoio da população. Este ex-funcionário da CIA acrescenta que, apesar deste fracasso, esta operação proporcionou aos Estados Unidos ensinamentos que a seguir encontraram aplicação "em lugares como o Laos e o Vietname", ou seja, no decorrer de guerras coloniais que foram as mais bárbaras do século XX.
Enquanto em recompensa o Dalai Lama recebia reconhecimentos e homenagens de Washington, Martin Luther King organizava a contestação contra a guerra do Vietname e acabava por morrer assassinado exactamente por esta razão.
A antítese entre Gandhi e o Dalai Lama não é menos clara. O primeiro fala de "métodos hitlerianos" de "hitlerismo" a propósito do bombardeamento atómico de Hiroshima e Nagasaki. E vamos abrir agora o Corriere della Sera de 15 de Maio de 1998: ao lado de uma foto do Dalai Lama com as mãos juntas em sinal de oração encontra-se um pequeno artigo cujo sentido é claro no seu título: "O Dalai Lama alinha-se ao lado de Nova Delhi: 'Eles também têm direito à bomba atómica' ", a fim de contrabalançar – é precisado a seguir – o arsenal nuclear chinês. Evidentemente, nem uma palavra sobre a ameaça que representa o potente arsenal nuclear estado-unidense, face ao qual foi concebido o modesto arsenal chinês.
E poder-se-ia continuar neste caminho...
Marie-Ange Patrizio: Há outra coisa?
Domenico Losurdo: A identificação de Gandhi com o movimento anti-colonialista é tão forte que a 20 de Novembro de 1938, sempre denunciando a barbárie da Noite de cristal e das "perseguições anti-judias" que "parecem não ter nenhum precedente na história", Gandhi não hesita em condenar a colonização sionista da Palestina como "incorrecta e desumana" e contrária a todo "código moral de conduta". Não me parece que o Dalai Lama haja alguma vez exprimido simpatia para com as vítimas da persistente colonização sionista e não poderia ser de outra forma uma vez que os protectores estado-unidenses de "Sua Santidade" são os principais responsáveis, com os dirigentes israelenses, pelo interminável martírio infligido ao povo palestino.
Marie-Ange Patrizio: Além do Dalai Lama, tu também te exprimes em termos bastante críticos acerca das "revoluções coloridas", fazendo-as igualmente partir dos incidentes da Praça Tienanmen.
Domenico Losurdo: Os documentos que temos agora à nossa disposição, e que foram publicados e celebrados no Ocidente como revelação final da verdade, os ditos Tienanmen Papers, demonstram sem sobra de dúvida que as manifestações que se verificaram em Pequim (e em outras cidades da China) na Primavera de 1989 estavam longe de ser pacíficas. Os manifestantes tiveram mesmo o recurso a gases asfixiantes e tinham à sua disposição ferramentas técnicas refinadas a ponto de poder falsificar a edição do Diário do Povo. Tratou-se claramente de uma tentativa de golpe de Estado. [2]
As sucessivas "revoluções coloridas" [3] tiraram proveito deste fracasso e aperfeiçoaram técnicas mais refinadas, expostas e ensinadas com uma paciência pedagógica num manual estado-unidense traduzido nas diversas línguas dos Estados a desestabilizar, e difundido gratuitamente e maciçamente [4] . Este manual é uma espécie de "Instruções para o golpe de Estado" a efectuar com a ajuda das embaixadas e de certas fundações estado-unidenses e ocidentais. Analisei isso minuciosamente no meu livro.
Interrogo-me – referindo-me também aos acontecimentos recente no Irão [5] e servindo-me sempre sobretudo de fontes e testemunhos ocidentais – sobre o significado estratégico que tomaram doravante, no quadro da política das mudanças de regimes, ferramentas como a Internet, Facebook, Twitter, os telemóveis, etc. [6]
Marie-Ange Patrizio: No teu livro analisas também o debate teológico e filosófico sobre a violência, que se desenvolve no século XX e cujos protagonistas são grandes teólogos como Reinhold Niebuhr e Dietrich Bonhoeffer e grandes filósofos como Hannah Arendt e Simone Weil. Tem-se a impressão que as tuas simpatias vão para os teólogos...
Domenico Losurdo: Sim, reconheço o encanto de Dietrich Bonhoeffer que, embora tendo sido durante algum tempo admirador e discípulo de Gandhi, conspira para organizar um atentado contra Hitler o que leva à forca, quando enfrenta o horror do Terceiro Reich. Àqueles que gostariam de liquidar como numa orgia de sangue o episódio histórico que começou em Outubro de 1917 e prosseguiu com as outras grandes revoluções do século XX, gostaria de sugerir que reflectissem sobre a polémica de Bonhoeffer com aqueles que "escolheram o asilo da virtude privada". Na realidade, não é "senão enganando-se a si próprio [que se pode] manter pura a sua própria não censurabilidade privada e evitar que ela seja não seja censura agindo de modo responsável no mundo". É a atitude – afirma o teólogo cristão – do "fanático", o qual "acredita ser capaz de se opor ao poder do mal com a pureza da sua vontade e do seu princípio". Na realidade, "ele coloca a sua própria inocência pessoal acima da sua responsabilidade para com os homens".
Marie-Ange Patrizio: Partindo do Dalai Lam e das "revoluções coloridas", denuncias a transformação da palavra de ordem das não-violência numa ideologia da desestabilização, do golpe de Estado e em última análise da guerra. Mas o teu livro também contém uma mensagem positiva?
Domenico Losurdo: O livro conclui conclamando a dar uma nova força à luta pela paz, reactualizando a grande tradição do movimento anti-militarista. No decorrer da história, talvez nunca como nos nossos dias, jamais foi prestada uma homenagem tão insistente ao princípio da não-violência. Ungido por uma auréola de santidade, Gandhi desfrutou de uma admiração e até de uma veneração incontestada e difundida universalmente. Os heróis da nossa época encontram a sua consagração na medida em que, na base de motivações reais ou de cálculos de realpolitik, são colocados no panteão dos não violentos. Mas não é por isso que a violência real diminuiu e ela manifesta-se não só nas guerras e ameaças de guerra como também nos bloqueios, nos embargos, etc. A violência continua a estar à espreita até nas suas formas mais brutais.
Podia-se ler recentemente no Corriere della Sera um ilustre historiador israelense evocar tranquilamente a perspectiva de "uma acção nuclear preventiva por parte de Israel" contra o Irão. O paradoxo é que, para ser eficaz, a luta pela paz deve saber desmascarar a transformação, promovida pelo imperialismo, da palavra de ordem da não-violência numa ideologia destinada a justificar a prevaricação e a lei do mais forte nas relações internacionais e, em última análise, a guerra.
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