Créditos do Texto: Observar e Absorver
As pessoas sorriem, se congratulam, se despedem – "se eu não te encontrar até o ano que vem..." – como se estivesse, mesmo, acabando um “ano”, uma realidade, e começando outro “ano”, outra realidade. Uma fronteira, invisível, universal e falsa. O sentimento de que de agora em diante tudo vai melhorar é estimulado, impelido, aumentado. Esqueça o passado, olhe o futuro, tudo vai melhorar. Narcose coletiva. A mídia anuncia, festeja, faz retrospectivas, os jornalistas sorriem, os comentaristas, os especialistas – tudo vai mudar. Confraternize, comemore, veja o compacto do ano todo. O primeiro desabamento foi em Angra, 50 casas foram soterradas. Sobre a mansão que despencou da área de risco, sobre as 50 casas, não se fala. A secretaria local de meio ambiente havia vetado a construção, mas o governador mandou liberar – afinal, os donos eram um casal “global”, pra quem não vale a lei dos mortais comuns. Ouça esse mesmo governador atribuir às centenas de mortos e aos milhares de desabrigados a responsabilidade pela tragédia de abril no Rio de Janeiro. Nos morros onde um certo prefeito, odiado pela mídia e pela cúpula social, fez as obras de contenção, cumprindo a obrigação do poder público, não houve nada, não desceu nem um degrau de escada. Vai no Fogueteiro pra ver. São uns criminosos, esses governantes. E se não forem, a mídia ataca.
Quem manda, continua mandando; quem finge que manda, continua fingindo. O inimigo entra na sala e diz que te ama, que faz tudo pela tua felicidade. Afaga tua mulher. Faz bilu-bilu no bebê. E te rouba o passado, o presente e o futuro, destrói a escola dos teus filhos, joga todo mundo contra todo mundo, droga e convence geral dos maiores absurdos. Mente e distorce a realidade e ai de quem não acredita. O próprio meio social se encarrega de discriminar e desqualificar os que não aceitam ser tratados como idiotas – ou gado humano. Narcose coletiva.
A polícia vai continuar violentando os pobres, os oficiais vão continuar maltratando os soldados. O transporte continuará consumindo um tempo enorme na vida das pessoas. Os professores, que deviam ser uma classe muito querida e próxima da população que lhes entrega os filhos ao preparo pra vida, seguirão sacrificados, com problemas nervosos, salários ridículos, estruturas precárias, verbas reduzidas. Não interessa o ensino público, se o povo percebe o que acontece, é revolução na certa. A mídia vai caprichar, cada vez mais, nas mentiras, nas implantações no inconsciente, na distorção. As empresas vão continuar poluindo, matando índios e pobres, corrompendo as administrações públicas em sociedade com a mídia, expulsando comunidades e camponeses.
Mas é ano novo, tudo vai mudar. Exerça, nessa época do ano, os sentimentos humanos, a solidariedade, a afabilidade, mas cuidado – são práticas muito perigosas. Assim que passar o período das festas, tranque de novo seus sentimentos pra só usar com a família e os conhecidos, e olhe lá. Sua raça, a humana, não merece.
Depois que passarem as festas, volte pra sua gaiola construída com mentiras. Guarde os sentimentos humanos no armário da angústia, eles são uma fantasia de uso rápido, de ocasião. Vista a angústia e, pra relaxar, consuma. Não confie em desconhecidos, dispute todas as migalhas, seu valor é seu preço – ou seu patrimônio. Acredite, mesmo, que tudo vai melhorar, por si só, sem precisar fazer nada. Ignore essa gente na calçada, o mar de barracos na baixada, os meninos do tráfico, do vale tudo ou nada.
É criada uma sensação fortíssima de mudança, para que se mantenha tudo como está. Narcose coletiva.
E feliz ano novo. Sorria.
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